sexta-feira, 31 de julho de 2020

Azulejos de Vasco Costa no Museu Berardo Estremoz

Abriu ao público no passado fim de semana o Museu Berardo Estremoz, dando a conhecer uma extensa colecção privada de azulejaria, até agora dispersa por vários locais ou em reserva. A exposição inaugural, intitulada “800 Anos de História do Azulejo”, propõe uma visão dos últimos oito séculos de azulejaria, fazendo-se acompanhar de um volumoso catálogo disponibilizado em formato digital no final da página online do Museu.
O catálogo da exposição “800 Anos de História do Azulejo” dedica dois capítulos à produção moderna do século XX, um denominado "Azulejaria Modernista", da página 638 à 659, outro "Azulejaria Moderna e de Autor", da página 676 à 704. Serve este último de mote à presente publicação, dedicada a um painel datado de 1958, até agora ignorado, da autoria de Vasco Costa (1917-1986).


Vasco Costa (1917-1986), fragmento do painel azulejar para o pavilhão português na IKOFA, Munique, 1958. Museu Berardo Estremoz 


Dada a extensão temporal abrangida pela exposição que dá origem ao catálogo e a escassez de texto que nele é dedicado a cada assunto, o tratamento superficial dos temas é natural e inevitável, o que é especialmente notório nos capítulos referidos. Sendo o seu texto dirigido a um público generalista, este catálogo pouco acrescenta ao que já foi escrito e publicado sobre azulejaria em Portugal, nomeadamente pelo especialista, investigador e grande divulgador de muitos anos, José Meco, um dos comissários da exposição e autor de vários textos nele contidos. No entanto, tendo a qualidade e o objectivo de reunir 800 anos de história do azulejo num só volume, será sempre uma publicação de referência, fundamental para consulta imediata, até pela fácil acessibilidade online,   
Como é sabido a generalidade dos conjuntos azulejares integrados na Colecção Berardo fez parte de edifícios e espaços arquitectónicos, muitos deles demolidos ou efémeros, pena é que muitos desses espaços não sejam referidos no texto do catálogo nem nas legendas das imagens, que poderiam conter muito mais informação útil.
Deseja-se que o Museu Berardo Estremoz, conferindo um espaço de exposição permanente a esta fundamental colecção de azulejos e cerâmica parietal, se estabeleça não só como espaço de exibição mas também como instituição promotora de investigação científica em torno da azulejaria nacional e internacional, especialmente dedicada aos objectos integrantes da colecção. Assim, aqui se publica um breve contributo, procurando trazer luz sobre alguns elementos "enigmáticos", ainda por decifrar, contidos no referido catálogo.

Sobre os dois fragmentos cujas imagens figuram nas páginas 688 e 689 do catálogo (abaixo reproduzidas), diz-nos o texto, na página 677: "O artista Vasco Costa (1917-1986) viveu a maior parte da sua vida no estrangeiro e é um dos nomes mais enigmáticos que aparecem associados à azulejaria e à Fábrica Viúva Lamego, estando representado na Coleção Berardo por dois fragmentos de uma composição com vagos elementos figurativos e colorido intenso, um dos quais está legendado: “EXECUTADO PELA F.ca C.ca VIÚVA LAMÊGO SEGUNDO CARTÃO DE VASCO COSTA 58” [101-3143], o que revela mais uma vez a ligação entre fábricas e artistas não ceramistas. O restante fragmento, apresenta uma figura feminina estilizada que na continuidade do anterior, legendado, poderia ser a figura que segura o carrinho de bebé [101-3142]." 



Página 688 do catálogo da exposição “800 Anos de História do Azulejo”, Museu Berardo Estremoz



Página 689 do catálogo da exposição “800 Anos de História do Azulejo”, Museu Berardo Estremoz


Em 1958, o Pavilhão de Portugal na Feira de Munique, I.K.O.F.A. (Internationale Kolonialwaren und Feinkost Ausstellung), dedicada à promoção e comercialização de bens alimentares e coloniais, teve  arquitectura de interiores da responsabilidade de Eduardo Anahory (1918-1985). Anahory, com estudos em arquitectura nas Escolas de Belas Artes de Lisboa e Porto, não sendo diplomado, distinguiu-se como arquitecto e designer de interiores, especializando-se no uso de materiais naturais e leves, na criação de elementos modulares e estruturas efémeras. O desenho expositivo da representação portuguesa na IKOFA 58 vem na sequência de um conjunto de trabalhos desenvolvidos no mesmo ano, em que colaborou a pintora Menez (1926-1995), sua companheira de então. Tanto o Café Vá-Vá (ver: Painéis do Café Vá-Vá - Menez), como o Bar de Vinho do Porto do Pavilhão de Portugal na Expo 58, em Bruxelas (ver: Cerâmica no Pavilhão de Portugal - EXPO58 Bruxelas), contam com painéis azulejares da autoria de Menez, executados na Fábrica Viúva Lamego.
Assim, para colaborar no pavilhão da IKOFA, Anahory convida, além da incontornável Menez, o pintor e artista gráfico Vasco Costa.
Vasco Costa, com formação na Escola António Arroio, dedicou-se à publicidade e decoração, tendo colaborado na Exposição do Mundo Português, em 1940, tal como Anahory. Neste contexto, os dois artistas, praticamente da mesma idade, ter-se-iam facilmente cruzado. Quando foi chamado a executar o desenho para um painel azulejar para a entrada do pavilhão português na Feira de Munique, Vasco Costa estava já a residir na região de Paris, França, onde se fixou após passagens pelos Estados Unidos e Inglaterra, trabalhando como pintor numa fábrica de porcelana, em Limoges. 
Costa executa um cartão para um painel a instalar no átrio do pavilhão, procurando sistematizar os conteúdos apresentados no seu interior. A composição funciona como preâmbulo e introdução, dando as boas-vindas ao visitante. O painel, de uma geometria plana eminentemente gráfica, organiza-se em secções quadradas  e rectangulares representativas da produção alimentar: a produção vinícola, as pescas, a agricultura e pecuária. Novidade nestas representações destinadas a feiras comerciais de produtos alimentares é a abordagem do ciclo do consumo como essencial à plenitude do processo. Vasco Costa compõe a imagem de forma circular. O 'círculo' inicia-se e fecha-se com a imagem do Sol e tem no centro um signo próximo do yin-yang, provavelmente alusivo ao ciclo da água. Na metade direita do painel estão concentradas as representações referentes ao consumo, estando no quadrante inferior, junto à assinatura, a figura feminina cujos fragmentos integram a Colecção Berardo. Assim, mediante a leitura do painel, a figura empurra um carrinho de super-mercado e não um carrinho de bebé, como é referido no texto do catálogo. 



Vasco Costa, vista do painel azulejar do pavilhão português na IKOFA, Munique, 1958. Kempter werbefotografie © CMP 






Planta do pavilhão português na IKOFA, Munique, 1958, com a localização do painel de Vasco Costa assinalada a amarelo. Desenho publicado na revista "Binário", nº 7, Outubro, 1958.





Localização do painel azulejar de Vasco Costa no átrio do pavilhão português na IKOFA, Munique, 1958, assinalada a amarelo. Kempter werbefotografie © CMP




Vista da entrada do pavilhão português na IKOFA, Munique, 1958, com painel azulejar de Vasco Costa. Fotografia do Estúdio Novais publicada na revista "Binário", nº 7, Outubro, 1958.





O nº 7 da revista "Binário", Outubro de 1958, publicou um artigo dedicado ao pavilhão português na IKOFA, em que atribui erradamente a autoria do painel de Vasco Costa a Menez, criando assim um equívoco difícil de desfazer quando se investiga apenas com base em fontes impressas e periódicos. Será, no entanto, evidente para quem conhece a obra azulejar e pictórica de Menez, que o painel não poderá ser de sua autoria, uma vez que em nada se aproxima na sua produção. 
De notória influência picassiana, o painel de Vasco Costa não deve confundir-se com os painéis azulejares da autoria de Menez. Estes, de maior escala, estavam situados no interior do restaurante, estendendo-se ao longo da parede de fundo. Desconhece-se o seu paradeiro, bem como dos restantes azulejos componentes do painel de Vasco Costa, sabendo-se que alguns fragmentos de painéis azulejares que integraram os pavilhões portugueses em feiras e exposições internacionais fazem actualmente parte das colecções do Museu Nacional do Azulejo, como é o caso dos painéis do Bar de Vinho de Porto da Expo58, de Menez.





Vasco Costa, painel azulejar do pavilhão português na IKOFA, Munique, 1958. Kempter werbefotografie © CMP






Vasco Costa (1917-1986), fragmento do painel azulejar para o pavilhão português no IKOFA, Munique, 1958. Museu Berardo Estremoz 






Vasco Costa (1917-1986), fragmento do painel azulejar para o pavilhão português no IKOFA, Munique, 1958. Museu Berardo Estremoz 






Vasco Costa, painel azulejar do pavilhão português na IKOFA, Munique, 1958. Kempter werbefotografie © CMP




Nesta última imagem pode ver-se uma montagem que integra os fragmentos pertencentes à Colecção Berardo na totalidade do painel, de que infelizmente só se conhecem imagens a preto e branco. Ficamos assim com o vislumbre de uma paleta de cores vibrantes, deixando a vontade de uma visão total. Na sua festividade cromática, a obra de Vasco Costa celebra na perfeição o espírito lúdico e optimista do pós- Guerra, não abdicando da ironia e sentido de humor. Que apareçam os restantes fragmentos para que brevemente possamos ter o painel completo, é o que se deseja.



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