domingo, 12 de agosto de 2012

Pratos de suspensão - Raul da Bernarda

A produção das décadas de 50 e 60, da fábrica Raul da Bernarda, em Alcobaça, é dominada por um forte ecletismo. Ao mesmo tempo que dá origem a peças de raiz Barroca e Rococó, onde os excessos decorativos são sublinhados pelo profuso uso do dourado, desenvolvendo uma gramática decorativa facilmente reconhecível, que podemos classificar de Kitsch. Produz ainda peças explorando as decorações tradicionais da região de Alcobaça e, em muito menos quantidade, outras fazendo uso de uma gramática decorativa moderna, onde formas de desenho estilizado aparecem associadas a técnicas de execução muito utilizadas na cerâmica alemã e italiana do mesmo período.
Exemplo de tal, são os dois pratos de suspensão modelo 1119, que publicamos. Medem 36,5 cm de diâmetro e apesar de terem exactamente o mesmo formato e serem provavelmente da mesma época, apresentam motivos e estilos decorativos completamente diferentes.
No primeiro caso, as características do desenho parecem revelar uma clara influência germâmica, especialmente da Ruscha-Keramik, como já havíamos notado a propósito de outras peças da Raul da Bernarda.
A linha é esgrafitada sobre um fundo revestido a esmalte negro mate, sendo as formas preenchidas com vidrados coloridos, brilhantes e relevados.
A peça é decorada com a representação de uma cena de caça, remetendo claramente para a mitologia clássica, já que as figuras parecem ser uma evocação do mito de Artemisa, deusa da caça e da lua, denominada Diana no panteão Romano, e o cervo.
Segundo a lenda, Artemisa, ciosa da sua castidade, transforma em cervo o caçador Acteon, após este a ter visto banhar-se nua, ao luar.


Raul da Bernarda - Prato 1119, Anos 60. © JMPF


Neste prato, apesar de as figuras serem planas e não fazerem uso dos efeitos de perspectiva, a definição de planos é dada, à maneira da gravura japonesa, através da relação figura / fundo, acentuada pela diferença de escala entre os vários elementos. Ao fundo vemos o cervo, em tamanho menor, a observar Artemis, cuja figura, em primeiro plano, se encontra perfeitamente enquadrada pelos limites curvos do suporte. 
Ainda que datado do Pós-Guerra, podemos encontrar neste motivo decorativo, referências Art Déco e Orientais, na exploração de uma gramática decorativa modernista, constituindo um dos exemplos mais sofisticados da produção moderna da Raul da Bernarda.


Raul da Bernarda - Prato 1119, detalhe. © JMPF


Abaixo podemos ver um prato de suspensão da Ruscha-Keramik, ilustrado com uma cena de pesca, utilizando o mesmo tipo de técnica e decoração, embora as pastas e esmaltes sejam de qualidade bastante diferente. O motivo decorativo é provavelmente da autoria de Adele Bolz (1914-1964), sobre o modelo 717/3, que mede 28 cm de diâmetro e data de 1958-60.


Ruscha-Keramik - Prato de suspensão, 1958-60. Flickr


Outras fábricas alemãs produziram peças semelhantes, exemplo disso é o prato de suspensão abaixo reproduzido, medindo 23,4 cm de diâmetro, da autoria de Arno Kiechle (1897-1969).

Arno Kiechle - Prato de suspensão, c.1956.

Arno Kiechle - Prato de suspensão, marca de fábrica.



No entanto, os detalhes do desenho no prato R.B. aproximam-se de forma mais evidente da produção da Ruscha, como se verifica pelo desenho do cervo.



Raul da Bernarda - Prato 1119, detalhe. © JMPF


O desenho sintético do animal apresenta semelhanças com o motivo decorativo denominado Antilope, usado em diversas peças da Ruscha-Keramik, com se reproduz abaixo.

Ruscha-Keramik - Placa de parede, motivo decorativo Antilope. eBay

Ruscha-Keramik - Placa de parede, marca de fábrica. eBay


O mesmo motivo trabalhado de diferente modo, numa jarra de 1958, modelo 861/1, cuja medida da altura é 21,84 cm.



Ruscha-Keramik - Jarra modelo 861/1, motivo decorativo Antilope. Etsy


Ruscha-Keramik - Jarra modelo 861/1, motivo decorativo Antilope, detalhe. Etsy


Ruscha-Keramik - Jarra modelo 861/1, motivo decorativo Antilope, marca de fábrica. Etsy


Se a numeração 1119 se refere ao formato e tamanho do prato, acreditamos que o número 17 se deverá referir ao tipo de decoração sobre esmalte mate preto, e não ao motivo decorativo, como anteriormente havíamos conjecturado. Já que as peças de diferentes formatos, decoradas com diversos motivos, que aparecem marcadas com o número 17, todas têm em comum a decoração sobre fundo preto mate.
Neste exemplar o tardoz é revestido com um esmalte amarelo brilhante, muito diferente do que acontece nas peças alemãs. Recurso estilístico particularmente eficiente quando a peça está colocada na parede, uma vez que a cor se reflecte nesta superficíe criando uma auréola de tonalidade quente, perfeito enquadramento para a forma circular negra do prato.
A marca aparece escrita à mão e sem assinatura do decorador. CMP* agradece quaisquer esclarecimentos sobre a autoria do desenho, datação ou identificação do pintor.


Raul da Bernarda - Prato 1119, tardoz. © JMPF

Raul da Bernarda - Prato 1119, marca de fábrica. © JMPF


O segundo caso, provavelmente contemporâneo do primeiro, apesar das diferentes opções decorativas, é ilustrado de forma muito mais descritiva.
A pintura, executada a pincel sobre fundo previamente colorido a aerógrafo, mostra-nos uma cena de carácter neo-realista, onde as referências cinematográficas são evidentes.
Numa imagem evocativa do Neo-realismo italiano, facilmente saída de um filme de Vittorio de Sica (1901-1974), três crianças descalças, entregues a si próprias, são representadas num cenário de ruínas, enquadradas por um arco, que sublinha a forma circular do suporte. A iluminação em contra-luz, é usada de modo a potenciar e efeito dramático. 


Raul da Bernarda - Prato 1119, Anos 60. © JMPF

Raul da Bernarda - Prato 1119, detalhe. © JMPF


Este tipo de imaginário, onde crianças de classes desfavorecidas gerem as suas próprias vidas sem o acompanhamento dos adultos, vivendo uma aprendizagem pela experiência, começa a ser explorado no cinema dos Anos 30.
O retrato da inocência infantil em confronto com as carências provocadas pela Grande Depressão, a que se junta o sofrimento causado pela Guerra, está na origem dos problemas morais tratados pelo Neo-realismo.
Um dos pioneiros a explorar este universo é o realizador japonês Yasujirô Ozu (1903-1963), no seu filme "Otona no miru ehon - Umarete wa mita keredo", em português "Eu Nasci, Mas...", de 1932, encenando uma sátira social em que as crianças funcionam como consciência dos adultos. Dez anos mais tarde, Manoel de Oliveira (n.1908), trata o tema na sua primeira longa metragem "Aniki-Bobó" (1942), onde a tragédia moral protagonizada por Carlitos, Teresinha e Eduardinho, culmina, apesar de tudo, num final feliz.

Manoel de Oliveira - "Aniki-Bobó" (1942)
Manoel de Oliveira - "Aniki-Bobó" (1942)

Já em "Germania anno zero" (1948), realizado por Roberto Rossellini (1906-1977), como última parte da sua trilogia sobre o legado da Guerra, a acção termina de forma trágica.  A história decorre nas ruínas de Berlim e retrata a luta quotidiana de uma família em dificuldades e o drama do jovem Edmund, que aos doze anos, depois de envenenar o pai acaba por suicidar-se.
O Neo-realismo é fundamental para a compreensão da realidade europeia no rescaldo da Guerra. Em Portugal este movimento artístico manifesta-se com maior preponderância nas artes plásticas, evidenciando preocupações políticas de contestação ao contexto social criado pelo Estado Novo, sendo o filme de Manuel de Oliveira, uma excepção vinda de um pioneiro, como tem vindo a confirmar o decurso da sua longuíssima carreira.


Roberto Rossellini - "Germania anno zero" (1948).


Não são vulgares temas neo-realistas na decoração de peças de cerâmica, a Raul da Bernarda, tal como outras fábricas da zona de Alcobaça, produziu inúmeras peças decoradas com paisagens campestres estereotipadas, povoadas com pequenas casas, muito próximas da produção alemã e italiana da mesma época. No entanto, nestas imagens de recorte idílico, raramente aparecem figuras humanas e muito menos são o centro da representação. 
Assim, o prato acima reproduzido, apresenta-se como uma excepção que, de forma ingénua, utiliza uma linguagem plástica próxima das artes gráficas da época.
Como demonstra o cartaz de "Germania anno zero", concebido pelo italiano Ercole Brini (1913-1989), um dos mais importantes designers de posters publicitários, na Europa do Pós-Guerra.


Ercole Brini -  cartaz para "Germania anno zero" de Roberto Rossellini (1948).


Neste prato a marca de fábrica aparece carimbada e a numeração escrita à mão, mais uma vez sem qualquer referência ao motivo decorativo, ao seu autor, ou pintor. Informações sobre estes dados, serão bem -vindas e poderão aqui ser acrescentadas.


Raul da Bernarda - Prato 1119, marca de fábrica. © JMPF



CMP* agradece a colaboração de José Manuel Pinheiro de Figueiredo, pela cedência de imagens de peças das suas colecções.





Sem comentários:

Enviar um comentário