segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Painéis do Café Vá-Vá - Menez

O Café Vá-Vá nasceu em 1958, no rés-do-chão de um dos emblemáticos blocos de apartamentos situados no cruzamento da Av. de Roma com a Av. dos Estados Unidos da América, em Lisboa.
Estes edifícios foram projectados em 1952, pelos arquitectos José Segurado (1913-1988) e Filipe Nobre Figueiredo (1913-1990) e a sua construção foi concluída precisamente no ano da inauguração do café.
Orientada pelos conceitos de urbanismo definidos pela Carta de Atenas, a Av. dos EUA integra um conjunto de edifícios onde as artes decorativas, em especial a cerâmica, desempenham um papel importante, quer através dos revestimentos em azulejo de padrão, quer através de painéis especificamente desenhados para integrar determinados espaços, como aqui anteriormente referimos.



Cruzamento entre a Av. de Roma e a Av. dos EUA, Lisboa - Edifício do Café Vá-Vá assinalado a amarelo.


Cruzamento entre a Av. de Roma e a Av. dos EUA, 1963. Foto de Armando Serôdeo (1907-1978) AML


José Segurado e Filipe Nobre Figueiredo - Bloco de apartamentos, fachada do Vá-Vá.


José Segurado e Filipe Nobre Figueiredo - Bloco de apartamentos, fachada do Vá-Vá. © CMP


Fachada do café Vá-Vá. © CMP


O Vá-Vá é baptizado pelo seu proprietário em honra do famoso futebolista brasileiro Edvaldo Izídio Neto (1934-2002), conhecido pela alcunha homónima e campeão mundial pela Selecção Brasileira de Futebol em 1958, feito que repetiria em 1962.
A designação está em perfeita consonância com as de outros cafés e snack-bares recém inaugurados. Os nomes em voga eram compostos por fonemas simples e repetitivos como onomatopeias, escolhidos por serem lúdicos e fáceis de fixar, traduzindo o espírito juvenil do público a quem estes establecimentos eram destinados.
Citamos, a título de exemplo, o Pic-Nic (1954), no Rossio, o Pam Pam (1957), na Praça do Chile, o Tique-Taque (1957), na Av. de Roma (ver imagens mais abaixo) e o Pisca-Pisca (1960), na Rua Rodrigues Fonseca. 


Bloco do café Vá-Vá, visto da esplanada da pastelaria Luanda, Anos 80. Artur Pastor (1922-1999) AML

Com desenho de interiores do arquitecto e decorador Eduardo Anahory (1918-1985), o Vá-Vá irá transformar o nº100 da Av. dos EUA, num mítico lugar de tertúlia, especialmente associado ao chamado Cinema Novo  português.
Anahory convida a pintora Menez (Maria Inês Ribeiro Fonseca) (1926-1995), com quem também colabora no projecto do Bar de Vinho do Porto, anexo ao pavilhão português na  Exposição Universal de Bruxelas do mesmo ano, para realizar os painéis que revestem as paredes do interior do café.
Como regista Salette Tavares, na revista Colóquio Artes, Setembro, 1981: "Vi pela primeira vez pintura da Menez em 1958 na Exposição de Bruxelas. Eram pinceladas e fogosas que enchiam de ritmo um grande muro. Quando depois estive numa exposição sua, surpreendi-me pela humildade segura e pela procura, muito clara e determinada dos seus meios de expressão, das linhas formais que qualitativamente privilegiava na busca de si própria: Menez pintora."


Menez - painéis do Vá-Vá, 1958. © CMP



Menez - painéis do Vá-Vá, 1958. © CMP



Menez - painéis do Vá-Vá, 1958. © CMP


Menez - painéis do Vá-Vá, 1958. © CMP


Menez - painéis do Vá-Vá, assinatura, 1958. © CMP



Menez - painéis do Vá-Vá, 1958. © CMP



Menez - painéis do Vá-Vá, 1958. © CMP


Menez - painéis do Vá-Vá, 1958. © CMP



Menez - painéis do Vá-Vá, 1958. © CMP

Sobre a azulejaria de Menez, escreveria ainda Salette Tavares, no já referido artigo: "(...) ela entendeu melhor que ninguém em que consiste a beleza do azulejo. A sua verdade. O brilho e a organização económica e simples da forma. Porque é no cintilar que só o processo artesanal lhe dá, que reside o segredo do azulejo, que não tem, ao contrário do que muitos crêem, a mínima vocação industrial. (...) Um muro de azulejos não é um muro duro de esmalte fechado. É um vibrar aberto em que a imperfeição do vidro colabora. A diferença entre um azulejo produzido industrialmente (por exemplo os italianos e algumas imitações já na produção nacional) está na natureza peculiar do nosso azulejo, ligada a uma técnica mais primitiva em que a cozedura se faz a fogo vivo e não em muflas eléctricas. O desagradável na maioria dos nossos azulejos modernos, é em geral o facto de se utilizarem aperfeiçoamentos técnicos que nada ajudam: enriquecem pomposamente a perfeição aparente empobrecendo a qualidade expressiva."
De notar, a propósito da crítica feita por Salette Tavares à produção industrial, que os artistas que mais contribuíram para a renovação da produção azulejar em Portugal,  igualmente se empenharam em recuperar as técnicas tradicionais, revestindo-as de uma linguagem moderna.



Menez - Pintura, óleo sobre tela, 100 x 64 cm. CAM


Em Abril de 1968, em resposta ao "Inquérito à Nova Pintura", realizado pelo Jornal de Letras e Artes, Menez afirma "Comecei a pintar em 54. Foi importante para mim a descoberta da arte abstracta, através de pintores como Vieira da Silva, sem esquecer Bonnard, Rothko e Matisse."
São claras as relações formais entre a pintura a óleo acima reproduzida, de data desconhecida, pertencente à colecção do Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian, e os painéis executados para o Vá-Vá.
Os painéis exploram uma paleta de cores pastel, composta por azuis e verdes transparentes, combinados com amarelos luminosos e apontamentos a negro. Estas cores parecem ter sido seleccionadas em função da articulação com os revestimentos em madeira, de tonalidades escuras e quentes.



Menez - painéis do Vá-Vá, 1958. © CMP



Menez - painéis do Vá-Vá, 1958. © CMP


Embora se verifique a repetição de motivos nas duas salas contíguas, como pode ver-se nas imagens acima, numa das salas os painéis de madeira conservam a cor original, enquanto na outra foram pintados de branco, tendo sido acrescentado, nas zonas laterais, um revestimento de mármore da mesma cor. 
A comparação entre as duas situações põe em evidência a favorável relação entre as qualidades dos materiais originais, no primeiro caso, demonstrando a falência dessa relação prevista inicialmente, no segundo caso. 
Após sucessivas remodelações, os interiores do Vá-Vá, foram, infelizmente, totalmente descaracterizados, sofrendo com intervenções pouco pensadas, ainda que bem intencionadas. 
Nas imagens aqui mostradas, vistas gerais do interior do café foram evitadas, para não perturbar a leitura dos painéis, já que o espaço está actualmente sobrecarregado de elementos publicitários, decorativos e objectos das mais variadas espécies, como plantas artificiais, etc.  Todo o conjunto azulejar está evidentemente necessitado de trabalho de restauro e conservação. 
Para mais detalhes sobre a história, as remodelações e as actividades desenvolvidas no café ver Vozes do Vá-Vá.



Menez - painéis do Vá-Vá, assinatura, 1958. © CMP



Menez - painéis do Vá-Vá, assinatura, 1958. © CMP

O espaço foi filmado pelo realizador Paulo Rocha (1935-2012), apenas alguns anos após a sua inauguração, ficando assim conservado pelo cinema, tal como Eduardo Anahory o imaginou, ainda que em imagens a preto e branco.



"Verdes Anos" (1963), cartaz.


Filme inaugural do Cinema Novo, "Verdes Anos" (1963), recupera afinal uma temática cara à produção das décadas anteriores, a dualidade cidade/campo. 
As avenidas de Roma e EUA, ainda em obras, são a imagem da cidade nova, nos limites de uma vida urbana em construção. O Vá-Vá e o edifício onde se situa, no cruzamento entre os dois eixos, constitui o cenário referencial ao desenrolar do drama. Dois momentos determinantes, um no início, outro no final da acção, são filmados no interior do café. 
Primeiro quando Afonso, papel desempenhado pelo actor Paulo Renato (1924-1981), vem mostrar aos dois protagonistas, Júlio e Ilda, Rui Gomes (1939-2001) e Isabel Ruth (n.1940), os painéis de azulejos do interior do café, situação que se estende a outros pontos da nova arquitectura da cidade, como por exemplo a loja "Rampa", no Chiado.


Paulo Rocha - interior do café Vá-Vá, "Verdes Anos" (1963).

Paulo Rocha - interior do café Vá-Vá, "Verdes Anos" (1963).

Paulo Rocha - interior do café Vá-Vá, "Verdes Anos" (1963).


Paulo Rocha - interior do café Vá-Vá, "Verdes Anos" (1963).

Paulo Rocha - interior do café Vá-Vá, "Verdes Anos" (1963).

Na sequência final, os mesmo painéis que anteriormente tinham representado uma visão de esperança no futuro, servem de pano de fundo ao olhar censório, hostil ao protagonista, sublinhando a sua inadaptação à urbe. Passam de horizonte vindouro, lugar de sonho desejado, a uma impossibilidade, agora inalcançável.
Paulo Rocha tira partido das qualidades paisagísticas da linguagem abstracta de Menez, utilizando os painéis de forma a multiplicar as suas possibilidades de leitura, em articulação com a linguagem cinematográfica, num diálogo inédito no cinema português.


Paulo Rocha - interior do café Vá-Vá, "Verdes Anos" (1963).


Paulo Rocha - interior do café Vá-Vá, "Verdes Anos" (1963).

Paulo Rocha - interior do café Vá-Vá, "Verdes Anos" (1963).

Paulo Rocha - interior do café Vá-Vá, "Verdes Anos" (1963).

Do Vá-Vá de "Verdes Anos" já praticamente nada reconhecemos, além dos painéis de Menez. Ficam como dado arqueológico, testemunho de um passado recente quase todo destruído, os desaparecidos cafés modernistas de Lisboa.



CMP* dedica esta publicação à memória do cineasta Paulo Rocha, recentemente desaparecido.