Damos continuidade à publicação de figuras de tipos populares portugueses da autoria de Fernando da Ponte e
Sousa (1902-1990), para a SECLA, fábrica da qual foi sócio fundador e gerente juntamente com Alberto Pinto Ribeiro (1921-1989), de 1947 a 1955, retomando o cargo, entre 1966 e 1974.
Outras figuras da mesma série:
Ponte e
Sousa frequentou o atelier do escultor
Leopoldo de Almeida (1898-1975), dai resultando a aprendizagem académica da modelação da figura humana, revelada em
peças escultóricas de maior escala, produzidas em séries limitadas pela SECLA.
A sua habilidade como modelador leva-o a conceber também serviços para a produção corrente, uns ecoando tardiamente a geometria Art Déco e outros adaptados a um gosto de cariz popular, procurando servir as necessidades do mercado.
No entanto, é nas figuras populares humorísticas, em especial as que hoje publicamos, que melhor revela a sua capacidade de sintetização da forma. Esta série caricatural, por si modelada na década de
50, continuou em produção por vários anos, resultando em
variações cromáticas e gráficas da autoria dos pintores responsáveis
pela execução da decoração, que muitas vezes também assinam as peças.
Os exemplares que agora mostramos, no entanto, constituem excepção à regra, já
que, pela concepção sumária, não permitem qualquer variação decorativa:
duas figuras de mulheres da Nazaré, envoltas nas suas capas negras.
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Fernando da Ponte e Sousa - Nazarena, c.1955, SECLA. © PMC |
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Fernando da Ponte e Sousa - Nazarena, marca de fábrica, SECLA. © PMC |
O traje típico da Nazaré é composto pelas famosas sete saias, das quais a exterior é plissada, de cor lisa e as seis interiores são de padrões variados, com orlas decoradas, combinadas com blusas de algodão florido. A complementar, o avental em seda bordada à mão e o cachené, lenço típico.
Deste traje faz também parte a capa preta, de fazenda de lã e o chapéu, com grande borla, do mesmo material.
A capa, protegendo do frio ou do calor, aparece amiúde retratada nos registos fotográficos da década de 50 e anteriores. As mulheres da Nazaré, esperavam os seus homens no regresso do mar, muitas vezes sentadas na areia, abrigadas na madrugada, pelas espessas capas negras. Abrigo protector, "tenda", "casa", a capa assume uma função fundamental nos comportamentos femininos e na preservação das relações sociais.
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Nazarenas - cartão postal, Anos 30.
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Nazaré - cartão postal, Anos 60. |
Ponte e Sousa trabalha nestas duas peças um dos traços identitários mais fortes das mulheres da Nazaré, como podemos comprovar observando as várias reportagens fotográficas da autoria de fotógrafos nacionais e internacionais, que pela região passaram.
Nas peças de Ponte e Sousa, o sintetismo é levado ao extremo.
As figuras são retratadas agachadas, segundo uma composição piramidal, reveladora de
uma aprendizagem clássica, pondo em causa ironicamente o conceito de estátua de capote, depreciativamente aplicado à estatuária do Estado Novo.
Este conceito refere-se à estatuária pública monumental que, tomando como modelo as propostas de
Francisco Franco (1885-1955) consubstanciadas na estátua de Gonçalves Zarco, exibida na Avenida da Liberdade, em Lisboa, em 1928, desenvolve um conjunto de figuras históricas envolvidas em volumosas capas, dando origem a uma linguagem académica que, como qualquer academismo, se afasta das propriedades expressivas do modelo.
Nesta categoria cabem por exemplo "D. Leonor", nas Caldas da Rainha, de 1935; "Salazar", retratado de borla e capelo, para a Exposição Internacional de Paris de 1937; "D. Dinis", na praça da Universidade de Coimbra, 1943, que o próprio Franco leva a estilizações decorativas academizantes.
A tendência será seguida por escultores mais jovens, como Leopoldo de Almeida, em "Soberania", obra realizada em 1940, para a Exposição do Mundo Português e em "Ramalho Ortigão", para o Parque das Caldas da Rainha, 1954; ou
Salvador Barata Feyo (1899-1990) com as estátuas de "Garrett", "Herculano" e "Antero", realizadas entre 1945 e 46, para citar apenas alguns exemplos de entre os inúmeros possíveis.
Obviamente Ponte e Sousa conhecia o meio das encomendas públicas, com que tinha convivido durante a prática no atelier de Leopoldo de Almeida. As suas pequenas e despretensiosas estatuetas, não deixando de o ser, conferem uma grau de sensibilidade criativa à representação do "capote", totalmente ausente da grande estatuária oficial. O capote ganha aqui uma dimensão doméstica, feminina e protectora, diametralmente oposta à expressão pretensamente heróica dos seus congéneres de grande escala.
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Fernando da Ponte e Sousa - Nazarena, c.1955, SECLA. © PMC |
Neste segundo exemplar há uma clara referência às inúmeras representações da
Maternidade que, na década de 40 proliferaram, quer por via da imagética religiosa, quer através do seu contraponto neo-realista, de que damos como exemplo as peças do escultor
Vasco Pereira da Conceição (1914-1992), pertencentes à colecção do
Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian, provavelmente também baseadas nas mulheres da Nazaré, região da qual o artista é originário.
Mais uma vez as peças de Ponte e Sousa se afastam dos estereótipos propostos em ambos os casos, não servindo nem o modelo religioso nem o neo-realista. Assumem uma linguagem de enorme liberdade, inscrevendo-se na gramática do
cartoon, nada estanha à cerâmica das Caldas pela via de Bordalo Pinheiro, mas agora com um tratamento verdadeiramente moderno, tanto formal como conceptualmente.
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Vasco Pereira da Conceição - "Figura de Mulher", 1957 e "Maternidade", 1952. Terracota. Col. CAM-JAP. © CMP |
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Fernando da Ponte e Sousa - Nazarena, marca de fábrica, SECLA. © PMC |
As duas peças estão marcadas com as iniciais do autor "FPS", a par com as marcas "SECLA", "Portugal" e numerações correspondentes ao modelo. Muitos dos exemplares, provavelmente posteriores, não apresentam o monograma de Ponte e Sousa.
As duas peças aqui publicadas pertencem à colecção P.M.C. a quem CMP* muito agradece, pelas suas contribuições, imprescindível colaboração e infinita paciência.