A habitação unifamiliar do actor, encenador e radialista Francisco Igrejas Caeiro (1917-2012) é um projecto do arquitecto Francisco Keil do Amaral (1910-1975), datado de 1958.
Situada no Alto do Lagoal, Caxias, foi na época descrita na imprensa como "vivenda de estilo hollywoodiano", à escala nacional. Ocupando uma área de 4500 metros quadrados, a habitação está implantada num promontório que domina todo o vale, a Oriente Lisboa, a Ocidente a saída da barra, de fronte uma vista privilegiada sobre o Tejo. Esta moradia e espaço envolvente, incluindo jardim, horta e capoeira, constituía, até há pouco tempo, uma das obras mais bem conservadas da autoria de Keil do Amaral, estando os interiores intactos, mantinha a sua concepção original, reflectindo o gosto moderno pelo conforto funcionalista, tão raro em Portugal, abraçado pelo casal Igrejas Caeiro e Irene Velez (1914-2004).
Deixada em testamento pelo seu proprietário à
Fundação Marquês de Pombal, Oeiras, com a condição de ser musealizada e o seu valioso espólio documental colocado à disposição da comunidade, a casa de Igrejas Caeiro encontra-se ainda fechada, apesar de
notícias publicadas em 2012 garantirem a sua abertura no ano seguinte.
Procura-se aqui alertar para a importância arquitectónica e artística deste legado no contexto do movimento moderno em Portugal, dando especial ênfase à integração das artes e design de interiores de que constitui testemunho exemplar, como pode observar-se nas fotos abaixo.
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Igrejas Caeiro junto ao painel "Teatro" de Maria Keil, 1959. Fotografia Daniel Rocha, 2012 | Público |
Nesta obra arquitectónica, a peça mais relevante no contexto da integração das artes será sem dúvida o painel azulejar da autoria de Maria Keil (1914-2012), "Teatro", 1959, revestindo uma parede da galeria envidraçada, com vista de mar, também usada como sala de jogos e espaço de trabalho. Produzido na Fábrica Viúva Lamego, como era habitual na obra da autora, este painel não vem referido em nenhum dos catálogos e monografias dedicados a Maria Keil.
O painel é composto por um conjunto de figuras integrado num fundo de padrão geométrico, à semelhança do que acontece em "
Pastores", 1955, pertencente à colecção do
Museu Nacional do Azulejo. Como explica Igrejas Caeiro à revista Plateia, 10 de Maio, 1963, uma das figuras alegóricas representa a Tragédia, outra a Comédia e a Hidra, monstro de sete cabeças, representa o público. Há ainda a referir uma figuração circular geométrica, preenchida com cores primárias, que poderá evocar o Sol e a Lua/Dia e Noite, provavelmente numa analogia à Tragédia e à Comédia.
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Excerto do painel "Teatro", Maria Keil, 1959. Fotografia João Cunha - RR , 2017. |
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Igrejas Caeiro junto ao painel "Teatro" de Maria Keil, 1959. Fotografia Lobo Pimentel, in Plateia, nº 149, 1963. |
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Vista da sala de jogos com painel "Teatro" de Maria Keil, 1959. Fotografia in Arte e Decoração, nº 6, 1969. |
Na casa do Alto do Lagoal todo o mobiliário e concepção dos interiores, pensados de forma integrada, tomam um valor essencial, revelando a articulação entre o pensamento do arquitecto e dos seus clientes. No atelier Keil do Amaral o design de mobiliário e objectos ficava muitas vezes a cargo de Maria Keil. É provável que neste projecto tal também possa ter ocorrido, uma vez que reconhecemos no desenho do mobiliário uma extensão do pensamento arquitectónico. Estantes, bancadas ou armários sublinham os espaços, racionalizando-os, num aproveitamento funcional e equilibrado.
Reconhecemos também um diálogo entre os objectos pessoais dos habitantes da casa e os espaços arquitectónicos, como se estes tivessem sido pensados para os acolher. Obras de arte, peças de cerâmica moderna e popular, livros, candeeiros, vasos com plantas e mobiliário relacionam-se de forma complementar, em dinâmica, sem a necessidade da criação de lugares determinados para cada coisa.
A modernidade reflecte-se também na escolha dos objectos, dominada por uma colecção de arte moderna que inclui pinturas de Júlio Pomar (n.1926), Jorge de Oliveira (1924-2012) e Abel Manta (1888-1982), entre outros. O interesse pela cerâmica moderna revela-se não só através do painel de Maria Keil, mas também pela presença da cerâmica de autor de Jorge Barradas (1894-1971) ou do "Cristo" de Rosa Ramalho (1888-1977), ceramista popular da região de Barcelos, admirada e dada a conhecer pelo movimento moderno. Numa parede especialmente revestida por pastilhas cerâmicas da fábrica Tijomel, Caxarias, cria-se uma textura gráfica e lumínica, sobre a qual se destaca o desenho da chaminé da lareira e o Cristo em barro branco, não vidrado.
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Vista da sala e biblioteca. Fotografia FMP |
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Rosa Ramalho, "Cristo", década de 1950. Fotografia MdS |
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Fábrica Tijomel, Caxarias, revestimento em pastilhas cerâmicas industriais. © CMP |
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Igrejas Caeiro e Irene Velez com o cão, o boxer Godot. Fotografia Lobo Pimentel, in Plateia, nº 149, 1963. |
O desenho de mobiliário integrado é uma marca do movimento moderno, encontra-mo-lo em todas as áreas da casa de Igrejas Caeiro, embutido ou desenhado à medida do espaços, desde as zonas de estar, à cozinha. Teme-se particularmente pela conservação destes objectos, tão importantes para a história do design em Portugal, especialmente quando tanto já foi destruído neste campo. Seria fundamental que a
Fundação Marquês de Pombal e o Município de Oeiras se articulassem com o Museu do Design ou integrassem nas equipas de trabalho técnicos especializados, de modo a conceber um projecto museológico fundamentado e didáctico. Só assim os visitantes poderão tomar consciência da importância da conservação das peças produzidas em meados dos século XX, zelando pelo que ainda resta deste período.
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Vista da sala e biblioteca. Fotografia FMP |
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Vista da sala e biblioteca. Fotografia in Arte e Decoração, nº 6, 1969.
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Igrejas Caeiro e Irene Velez junto a uma das estantes. Fotografia Lobo Pimentel, in Plateia, nº 149, 1963. |
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Igrejas Caeiro e Irene Velez junto a uma das estantes. Capa da revista Arte e Decoração, nº 6, 1969. |
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Igrejas Caeiro e Irene Velez numa das zonas de estar. Fotografia Lobo Pimentel, in Plateia, nº 149, 1963. |
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Irene Velez na cozinha. Fotografia Lobo Pimentel, in Plateia, nº 149, 1963. |
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Vista da cozinha. Fotografia in Arte e Decoração, nº 6, 1969. |
Ambas situadas na Rua Paulo da Gama, a casa de Igrejas Caeiro (assinalada a amarelo na imagem abaixo) articula-se com a moradia pertencente ao engenheiro Lino Gaspar, cuja família muitas vezes participava nas gravações radiofónicas orientadas pelo actor.
Desenhada pelo arquitecto João Andresen (1920-1967), projecto de 1953-1955, a
Casa Lino Gaspar, incluindo jardim, está classificada como
Monumento de Interesse Público, desde 2012. Este edifício alberga um painel cerâmico da autoria de Hein Semke (1899-1995), embora não referido na descrição do imóvel, na página da
DGPC, configurando um exemplar modernista de ruptura. O projecto de Keil do Amaral para Igrejas Caeiro, ainda que menos radical que a proposta de João Andresen, seria igualmente merecedor desta protecção, tanto pela qualidade arquitectónica como pela coerência formal dos seus interiores. No entanto, não se encontrando classificado, está à mercê de alterações fortuitas, como as que decorrem na actualidade.
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Casa de Igrejas Caeiro, Francisco Keil do Amaral, 1958; e Casa Lino Gaspar, João Andresen, 1953-55. |
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Aspecto exterior da casa de Igrejas Caeiro, Francisco Keil do Amaral, projecto de 1958. Fotografia FMP |
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Aspecto exterior da casa de Igrejas Caeiro, Francisco Keil do Amaral, projecto de 1958. Fotografia FMP |
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Aspecto exterior da casa de Igrejas Caeiro, Francisco Keil do Amaral, projecto de 1958. Fotografia FMP |
A moradia de Caxias albergava também um estúdio de gravação profissional, uma enorme colecção de discos de vinil e uma completa biblioteca de teatro, permitindo a realização de programas de rádio a partir de casa. Assim, o programa publicitário e de teatro radiofónico, "Companheiros da Alegria", dirigido por Igrejas Caeiro e Irene Velez, era gravado nos seus estúdios privados, equipados com a mais moderna tecnologia da época.
As imagens seguintes mostram os ensaios gerais do programa de dia 24 de Dezembro de 1960, véspera de Natal, da rubrica "Parque Infantil", com texto de Mário Castrim, a decorrerem na sala de jogos onde se encontra o painel azulejar "Teatro".
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Ensaio geral do programa "Parque Infantil", 1960. Fotografia Lobo Pimentel, in Plateia, nº 73, 1961. |
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Ensaio geral do programa "Parque Infantil", 1960. Fotografia Lobo Pimentel, in Plateia, nº 73, 1961. |
Nestas imagens pode ver-se toda a equipa do programa "Parque Infantil, da esquerda para a direita, em primeiro plano, sentados: Guida Maria e Carlos Eduardo Lino Gaspar; em segundo plano, sentados: Elvira Velez, António Sacramento, Rui Furtado, Luís Cerqueira, Maria Alexandra Lino Gaspar, Irene Velez e Igrejas Caeiro; de pé: Jorge Arriaga de Oliveira, Henrique Pereira, Francisca Maria, Eduardo Canto e Castro, João Mota, E. Santo e Mário Castrim.
É também visível o ambiente de trabalho descontraído e como o mobiliário de estrutura tubular ou as almofadas em bunho de Santarém eram utilizados de forma lúdica.
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Ensaio geral do programa "Parque Infantil", 1960. Fotografia Lobo Pimentel, in Plateia, nº 73, 1961. |
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Ensaio geral do programa "Parque Infantil", 1960. Fotografia Lobo Pimentel, in Plateia, nº 73, 1961. |
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Vista da sala de jogos. Fotografia in Arte e Decoração, nº 6, 1969. |
A preocupação expressa nesta publicação é fortalecida pelos testemunhos e denúncias que circulam nas redes sociais sobre o facto de estarem a aparecer objectos integrantes do espólio de Igrejas Caeiro em leilões e feiras de velharias, bem como notícias da transformação do edifício em alojamento local, com obras profundas a decorrerem neste momento, colocando em causa a integridade deste valioso património. Sendo a
Fundação Marquês de Pombal, Oeiras, responsável pela salvaguarda do legado cuidadosamente construído pelo doador, Igrejas Caeiro, não estará assim a desrespeitar a sua vontade, lesando o público a quem a fruição deste espólio manifestamente se destinava?
Consideramos que a melhor forma de homenagem será respeitar a vontade de Igrejas Caeiro, preservando a sua memória. Abrir ao público a casa-museu devidamente preservada, disponibilizando o seu espólio para que este se possa conhecer e estudar.