domingo, 14 de abril de 2013

Luiz Pacheco entrevista Luís Ferreira da Silva

A 21 de Junho de 1965, é publicada no Jornal de Letras e Artes uma entrevista a Luís Ferreira da Silva (n.1928) realizada pelo escritor e editor Luiz Pacheco (1925-2008), não identificado.
Em retiro forçado nas Caldas da Rainha, Pacheco estava a braços com a justiça, passando por extremas dificuldades económicas, já tornadas habituais, tanto pelo crescimento da prole, como pela incerteza do trabalho. A sua relação com a cidade estabelecera-se na infância, aí passando temporadas com o pai, em tratamento nas termas. O regresso às Caldas dá-se em finais de 1964, aí residindo com a família até 1967, ano em que é pela segunda vez encarcerado, desta feita na prisão local, sendo libertado no ano seguinte.
Durante a sua permanência na região, o escritor sedimenta relações de amizade, participando activamente na vida cultural da cidade, desenvolvendo discurso crítico, bastas vezes polémico, como sempre lhe foi característico, revelando, não raramente, enorme clarividência.
A sua proximidade com Ferreira da Silva, dá origem a dois documentos fundamentais para o entendimento, tanto do percurso do ceramista, como das circunstâncias que, nas Caldas da Rainha, enquadravam a produção de cerâmica moderna, e as suas repercussões no panorama artístico e industrial nacionais: a entrevista que hoje publicamos e o texto "O Caso Ferreira da Silva", impresso em 1966, no fascículo de título genérico "Maravilhas & Maravalhas Caldenses", que mais tarde publicaremos.


Luiz Pacheco e Ferreira da Silva, no Inferno D'Azenha, Caldas da Rainha, c.1965-66. Imagem publicada em "50 anos de Cerâmica Caldense 1930-1980", Casa da Cultura de Caldas da Rainha, 1990.


Em carta dirigida ao editor Bruno da Ponte (n.1932), datada de 18 de Junho de 1965, Luiz Pacheco pede-lhe que interceda a seu favor no Jornal de Letras e Artes, para que ali possa continuar a publicar alguns textos, nomeadamente a entrevista com Ferreira da Silva, que acabará por sair dias depois.
A 29 de Julho, após a publicação da entrevista, em carta dirigida a Mário Cesariny de Vasconcelos (1923-2006), na época a residir em Londres, Pacheco queixa-se mais uma vez das suas miseráveis condições de vida, "Nesse dia tinha eu ido à Secla (já te falo nesta) pedir algum dinheiro para as papas. Mas estava tão desanimado ou abatido, que passei uma hora ou mais a uns metros da porta da fábrica, e mais pertinho da porta do cemitério que é ali mesmo defronte, e nem coragem tive de pedir a massa."
Acrescenta ainda: "Por Letras e Artes: leste uma entrevista com o Ferreira da Silva. Falei-lhe em tempos que talvez aí por Londres se pudesse fazer uma exposição com peças dele, que são muito boas (como ceramista ele é Prémio Soares dos Reis (SNI) de escultura, mas depois de lhe atribuírem o prémio não lho pagaram ou ele não aceitou, é um caso confuso que ainda não pude tirar a limpo, razão por que a minha entrevista não se lhe refere). A coisa creio que teria interesse para o Dácio na sua qualidade oficial e despesas nenhumas, porque a Secla (fábrica onde o Ferreira da Silva todo lo manda, como artista, tá visto) poria aí as peças embaladas, seguradas, etc. Não sei se sabes que a produção ceramista é toda para fora (América principalmente) de modo que a exposição honraria o nome português e traria honra e proveito duma maneira geral. (...) Não descures este assunto, que suponho fácil de concretizar e muito proveitoso para Mano e Mano. Aliás, o FS que é um tímido e um inábil do ponto de vista da propaganda pessoal (levei 6 meses para lhe arrancar esta entrevista, começada logo em Janeiro) merece apoio. Ele tem tido bolsas da Gulbenkian para ir ao estrangeiro, mas duas vezes não lhe deram passaporte, doutra foi ele que se desleixou com uma matrícula ou documento que era preciso. Um empurrão, um estímulo para o libertar aqui das Caldas, eram justos, e foi isso que tentei começar com a entrevista. E se há mais tempo não te falei nisto ou ao Dácio era porque a entrevista seria o cartão de apresentação."

A 4 de Agosto, Mário Cesariny responde: "De Ferreira da Silva há o seguinte: hipótese de uma exposição na Casa de Portugal, em Londres. Se lhe agrada a ideia, ele que envie para aqui, Walton St., para o Dácio, o melhor que tiver em fotografias de obras FS."

Aparentemente a exposição não chegou a realizar-se, continuando Luiz Pacheco a interessar-se pela obra de Ferreira da Silva, posicionando-se publica e particularmente em sua defesa sempre que possível, como se comprovará com a publicação, no ano seguinte, de "O Caso Ferreira da Silva".



Ferreira da Silva, Caldas da Rainha, 1965. Um reenquadramento desta imagem ilustra a entrevista no Jornal de Letras e Artes.


A entrevista ao Jornal de Letras e Artes , tem como título A cerâmica é uma arte de cozinha, cem por cento pantagruélica!.
A frase de Ferreira da Silva, que Pacheco inteligentemente escolhe para título, dá o mote, definindo-o como essencialmente  um experimentalista.
Através deste texto ficamos a conhecer as referências artísticas do ceramista, bem com as suas reflexões sobre o trabalho dos artistas que, sem conhecimentos técnicos, se aventuraram na cerâmica, nomeadamente os que colaboraram com a SECLA ou que nas suas oficinas trabalharam.
Ferreira da Silva traça ainda um panorama da chamada cerâmica da Caldas, passado e presente, segundo uma perspectiva muito própria, bem como das possibilidades da sua internacionalização.


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"FERREIRA DA SILVA:
«A cerâmica é uma arte de cozinha, cem por cento pantagruélica!»

Não foi nada fácil conseguir esta entrevista. Ferreira da Silva, pelos entendidos considerado o nosso melhor ceramista actual (também com boas provas já dadas na escultura, gravura, desenho), mostra-se de uma modéstia que roça pela timidez. Habitualmente cáustico e expansivo, de um saudável inconformismo nas suas opiniões como nas atitudes, ao falar de si e do seu labor artístico ladeia a nossa curiosidade, sorri a medo, como que envergonhado...
E não é uma das facetas mais desconcertantes, menos cativantes,  da sua personalidade de artista, o contraste que observamos, em repetidas visitas ao seu «atelier» da Secla, nas Caldas da Rainha, desse gros gaillard apontando uma que outra peça sua, dando pormenores da factura, dos materiais nela usados, com um ar aparentemente vago, recolhido, aguardando a opinião alheia numa calma de artesão, sabedor e seguro do seu ofício, discreto nas ambições, consciente do caminho que pisa – e tendo nós na lembrança o seu arranjo e firmeza noutras ocasiões, a sua independência de espírito, de um homem do seu tempo, de um português civicamente empenhado nos valores que lhe incumbe defender.
A cerâmica caldense conta em Ferreira da Silva, mais do que um seu categorizado representante contemporâneo, conta nele antes como um inovador, que sabe aliar uma longa experiência oficinal a um gosto moderno, um perfeito domínio da técnica oleira à rebusca de novos materiais, o funcionalismo de certas peças ao sentido decorativo doutras, criando um estilo inconfundível no granitado da pasta, no colorido dos vidrados, na vasta gama de formas insólitas ou arcaizantes que procuram estilizar motivos tradicionais.
Está neste momento a apurar um processo inteiramente original (que lhe custou dois anos de experiências) com o emprego de pigmentos, entre eles o urânio e o cobalto, que metalizam a elevadas temperaturas. E as suas últimas produções são colagens, formadas por resíduos de louça industrial e objectos de série (tudo aquilo que os americanos compram entre nós por lhes sair muito mais barato do que na Itália ou no Japão...), em volumes assimétricos, como que estilhaçados, duma visão grotesca de um mundo que ainda não esqueceu Hiroxima.



Ferreira da Silva - Prato decorativo, 62,7 cm de diâmetro. SECLA, 1964. Imagem publicada em A Nova Cerâmica da Caldas, da autoria de Alberto Pinto Ribeiro, 1989.



Ferreira da Silva - Prato decorativo, 62,7 cm de diâmetro. SECLA, 1964. Imagem publicada no catálogo Estúdio SECLA - Uma Renovação na Cerâmica Portuguesa, edição do Museu Nacional do Azulejo, 1999.



Ferreira da Silva (que nasceu no Porto em 1930 [sic]), dos 14 aos 17 anos frequentou a Escola Técnica de Coimbra, tendo sido depois operário ceramista em Coimbra, Bombarral e Alcobaça, passando sucessivamente por todas as modalidades da profissão, desde forneiro, vidrador, modelador, pintor, até ceramista, concorreu a todos os certames da S.N.B.A. denominados Exposições Gerais de Artes Plásticas, dos Independentes, dos Artistas de Hoje, etc. Obras suas estiveram expostas em Espanha, Itália, Alemanha, Suécia. Realizou este ano uma exposição individual na Galeria 111 e vai muito em breve apresentar as suas últimas criações de escultura cerâmica na Galeria Divulgação, do Porto. Foi esse o pretexto para uma breve troca de impressões, que supomos do maior interesse para os nossos leitores recolher nestas colunas. Falando de cerâmica caldense, o nome que imediatamente nos ocorre é o de Rafael Bordalo Pinheiro que, a partir de 1884, imprimiu aos barros das Caldas um surto renovador, aliás seguindo a esteira preconizada por Bernard Palissy, um francês que vivera três séculos antes dele (1510-1599).
Quisemos por isso saber a opinião que um artista contemporâneo, e trabalhando na mesma região com idêntica matéria-prima, teria acerca de tão ilustre antepassado:
- No aspecto geral a obra de Bordalo Pinheiro é melancólica – responde-nos Ferreira da Silva, com um sorriso irónico. -  Bordalo foi um artista dotado, mas sujeito ao academismo, daí o quase sempre primário naturalismo das suas faianças. Sofrendo as influências estéticas da época em que viveu, o seu conceito de Arte restringia-o a transplantar a verdade objectiva para as suas criações, e frequentemente com um aglomerado de elementos decorativos que revelam um gosto abstruso.
Foi um caricaturista viril e atento, simbolizou factos políticos em pequenas figuras ainda hoje flagrantes de graça, soube caracterizar os tipos populares, dando-lhes vida e movimento, com uma intuição e um poder de observação geniais. Preferia isto ao pacato lirismo dos céus luminosos, aos fundos uniformes de atelier, à transparência das flores, à moleza dos frutos; àquelas naturezas-mortas que estavam então na moda. A louça caricatural de Bordalo surge-nos como uma intransigente e lúcida defesa do quotidiano. Não discordo dele nessa sua tendência para amar o progresso social, que nas suas caricaturas e barros se reflecte, sugerindo os caminhos que a tal levam. Mas, como é natural,  o meu conceito de cerâmica é hoje outro...
- Que muito gostaríamos que expusesse aos nossos leitores – atalhamos. 
- A cerâmica é uma arte de cozinha, cem por cento pantagruélica. Arte do fogo e da terra, uma das mais antigas manifestações do engenho humano e ainda hoje presente na vida de todos os dias, quer no aspecto funcional quer no aspecto decorativo, utilizando os métodos mais avançados (em Valadares temos uma estufa atómica, a única existente na Europa ocidental) como nas eras primitivas saía modelada pelas mãos rudes dos nossos bisavós das cavernas... Entendo a cerâmica, pelo menos a que eu faço, ou vou descobrindo, como uma forma de escultura policromada. Aquilo que se chama cerâmica caldense não passa, actualmente, dum gosto importado, ou da masturbação do que o Bordalo, na sua maioria, importou do Palissy...
Industrialmente, a cerâmica portuguesa vive para o mercado externo, isto no que respeita à louça utilitária. Para as peças únicas, de faiança artística, já vamos tendo um público esclarecido no mercado interno.



Ferreira da Silva - Recipientes, SECLA, Anos 60. Imagem publicada em A Nova Cerâmica da Caldas, da autoria de Alberto Pinto Ribeiro, 1989.



- Como profissional, para quem a modelação do barro não tem segredos, que pensa V. daqueles artistas (pintores ou escultores) que fazem esporadicamente cerâmica, que tentam a sua habilidade como ceramistas?
- As qualidades inatas de pouco servem ao artista se não forem amadurecidas, se não encontrarem possibilidades de se desenvolverem de um modo coerente. Quando um artista se interessa por uma matéria plástica, ainda não utilizada por ele, e tenta exprimir-se através dela, surge o conflito. O que se pretende dizer não se ajusta, ou dificilmente se ajusta, ao material que não se domina por completo, à técnica ainda incerta. Descobre-se, então, a existência dum terreno escorregadio, onde o nosso caminho é vacilante. Chamemos-lhe o ofício, a esse terreno vasto, essa longa paciência da aprendizagem e da prática artesanal. E, a pouco e pouco, vamos constatando também que a consciência do Artista não se fortalecerá senão na medida em que estiver criando uma sólida consciência profissional.
Esta consciência profissional será, assim, o esteio, sempre presente e sempre necessário a todos os voos da inspiração criadora; mas temos por outro lado de entendê-la, não como coisa limitada, abêcê rotineiro a decorar na escola, a imitar dos mestres e a repetir pela vida fora, mas como todo o aspecto da Cultura: num constante evoluir, em perpétua transformação. Como qualquer obra de Arte, uma cerâmica é sempre resultante de uma luta, melhor: de uma série de lutas. Desde o momento em que nasce na mente do Artista àquele em que cede o lugar a outra, processa-se um mixto de conquista e descoberta, no qual a vontade do Artista é rudemente posta à prova. E o preço da sua concreção encontra-se lá, precisamente onde o caminho lhe surgir mais árduo, a porta mais cerrada a todas as evasivas e a todas as tentações de facilidade.
- Fale-nos das influências que experimentou.
- Como todos os artistas sofri influências. Principalmente de José Dias Coelho, de Júlio Pomar (na minha fase neo-realista) e de António Areal, cuja influência e cultura muito admiro. Aprendi muito, também, com António Quadros, o pintor – nada de confusões! E não quero esquecer o nome de Afonso Angélico, um oleiro cá das Caldas, com quem durante dois anos fiz o meu último tirocínio na profissão.
Ir buscar o barro aos barreiros, escolhê-lo no próprio local, amassá-lo à catanada, trabalhá-lo como um honrado artífice de Barcelos, doseá-lo com outros materiais, escolher o processo de metalização, estudar a temperatura de cozedura são coisas dispensáveis, é certo, para quem disponha de uma aperfeiçoada engrenagem industrial... Mas não serão igualmente atributos (escolhos e vitórias) da própria profissão? Era esta a pergunta que eu gostava de fazer, e faço sempre que vem a propósito, a todos os ceramistas amadores, por muito respeitáveis que me pareçam as suas tentativas, ou reconhecendo até o elevado mérito de algumas delas.
- Como encara o papel da crítica portuguesa de artes plásticas, especialmente em relação à cerâmica?
- Antes de responder a essa pergunta melindrosa, tenho que abrir um preâmbulo... Sempre foi próprio da condição humana, o julgar. Ora a produção de faianças tornou-se uma indústria em larga escala. Quando a indústria se mascara de Arte, ou esta e a produção utilitária quase se confundem, é necessário valorizar e desvalorizar, julgar portanto. Para a criação de uma obra de Arte não basta, porém, adquirir uma certa habilidade técnica, mais ou menos divulgável; nem a exploração mais ou menos talentosa de certos motivos facilmente comercializáveis... 
Não pretendo deplorar, de modo algum, o facto das obras de Arte valerem dinheiro. Felizmente que o valem!... Mas acho censurável que muita produção meramente funcional se apresente como obra de Arte. Não precisamos de muitas obras, temos tantas, já tantas – para deitar fora!... Precisamos é de criações adultas: isto de produzir muito (e muito à pressa), sem olhar às consequências, é um sintoma do espírito mercantil que hoje domina certas camadas. Não quero acusar ninguém, e muito menos aqueles que se têm mostrado interessados em praticar nas cerâmicas (há os que nem cerâmicas fazem, mas falam!). Quero apenas denunciar uma condenável conduta portuguesa, acentuada nos últimos tempos, a qual pode chamar-se teorismo, que tem agravado o já lamentável estado de confusão e penumbra da nossa triste atmosfera artística.
- Portanto, uma crítica esclarecedora e honesta é indispensável, não é onde quer chegar?
- Com certeza. Mas a posição é perigosa. Sabe porquê? Porque hoje em dia somos todos críticos, todos fazemos crítica... Ora em meu entender, para conseguir ser um verdadeiro crítico de cerâmica é necessária uma pré-experiência, além de intuição e espírito crítico. Mas não é recomendável supor que toda a gente que, em Portugal, faz crítica de cerâmica possua esse privilégio...



Ferreira da Silva - Jarra, 31,5 cm de altura. SECLA, Anos 60.



- Projectos imediatos?
- Permita-me que não lhe responda, abonando-me com um exemplo venerável: Kafka quis que as suas obras fossem destruídas pelo mesmo imperativo que lhe impediu concluí-las: é que elas não tinham conclusão possível. Concluí-las, seria para Kafka  ter resolvido o mistério da vida, ter cortado o nó-górdio da sua angústia... Cada nova obra era uma nova interrogação – e ao mesmo tempo uma tentativa de resposta: concluir alguma, seria ter achado esta.
Não tenho por isso projectos... Viajo, como diria o Pessoa. Mas há muito que desejava prestar homenagem (com uma peça de escultura policromada por processo cerâmico) a um herói antigo, que lutou à sua maneira contra a servidão dos homens, contra a própria servidão: Espártaco. E nessa homenagem gostaria que ficasse englobada, significante, uma adesão pessoal a todos quantos, à sua maneira, hoje tentam o mesmo."


Peças de Ferreira da Silva na SECLA, Anos 60. Imagem publicada em A Nova Cerâmica da Caldas, da autoria de Alberto Pinto Ribeiro, 1989.




Nota: A entrevista é transcrita respeitando a grafia da época. Os excertos de cartas provêm do suplemento da Gazeta das Caldas, de 11 de Janeiro de 2008, publicado aquando da morte de Luiz Pacheco. Informações adicionais retiradas de: George, João Pedro - Puta que os Pariu!: A Biografia de Luiz Pacheco. Lisboa: Tinta da China, 2011.







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